Entrevista com Martucci, especialista italiano em marketing e turismo

Por Silvio Cioffi

Crítico do que considera uma fragilidade dos números na indústria global de viagens, o turismólogo italiano Luca Martucci trabalhou na Alitalia por 20 anos, de 1986 a 2006, cuidando dos interesses dessa empresa aerea em países tão díspares como a Itália, a Tunísia, a Holanda, a Arábia Saudita, o Kuait, o Irã e o Paquistão.

No Brasil, Martucci dirigiu a companhia de bandeira italiana entre 1996 e 2002, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro. O executivo, que hoje se ocupa da empresa Concept Marketing e mora no Rio, também trabalhou para a Alitalia em diversas regiões da Itália e ainda na Inglaterra e na Noruega.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por ele à Folha, onde estão registrados dados sobre a indústria do turismo na Itália e em todo mundo, a ferrenha competição entre os principais países que recebem viajantes estrangeiros e os problemas relativos à segurança e ao terrorismo na Europa.

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O turismólogo italiano Luca Martucci, da Concept Marketing (Foto Arquivo Pessoal)

 

ESTRATÉGIAS E O IMBRÓGLIO DOS NÚMEROS

“As estatísticas no turismo são uma grande dor de cabeça no mundo inteiro –e, na Itália, isso não é muito diferente.

Confesso que nunca fui apaixonado por números, mas tenho o maior respeito por eles e pela importância que as estatísticas corretas e confiáveis têm no desenvolvimento da indústria global do turismo.

E costumo citar a famosa frase de W. Edwards Deming, “In God we trust, all others must bring data” [algo como “em Deus nós confiamos, todos os outros devem trazer dados”].

Falando do exemplo italiano, existem duas fontes principais de dados e elas seguem métodos diferentes: o Istat [o instituto nacional de estatísticas italiano] e a Banca d ‘Itália, que, aliás, fornece também os valores dos gastos de estrangeiros no país.

Os dados do Istat são repassados para UNWTO, que é o órgão vinculado às Nações Unidas que se dedica às estatísticas e aos dados relacionados ao turismo mundial.

Segundo o Istat, em 2014 –os dados de 2015 ainda não estão disponíveis–, a Itália recebeu 762.845 turistas brasileiros e eles teriam gerado 1.878.526 pernoites, com uma permanência média de apenas 2,5 noites por pessoa, coisa difícil de acreditar.

Já a Banca d’ Italia, de acordo com seus números de 2014, estima-se em cerca de 526.000 os brasileiros que visitaram o país. Eles teriam gerado 4,9 milhões de pernoites, o que vale dizer que, em média, tiveram uma permanência de 7,8 noites, número que me parece mais razoável.

Os dados da Banca d ‘Italia registram que 607 mil brasileiros foram a Itália em 2015, com um incremento de 6% em relação ao ano anterior. Para eles, haveria uma leve diminuição das permanências, mas, por outro lado, teria acontecido um aumento de gastos da mesma ordem em comparção aos dados de 2014.

As notícias aqui no Brasil falam de uma sensível queda dos gastos para viagens no exterior, mas, segundo os dados da Banca d’Italia, nos primeiros dois meses do 2016 teria havido um pequeno incremento nas despesas de brasileiros que foram à Itália neste ano…

Interessante reparar como, apesar da crise, o turista brasileiro se destaca como “big spender”, ou seja, gasta significativamente em suas viagens.

No entanto, a bíblia dos números do turismo, a referência, é a já mencionada UNWTO.

Tenho o maior respeito e uma grande admiração pelo marketing da França, mas os números deveriam sempre ser comparados a outros fatores, como a oferta de voos ou a capacidade hoteleira, para serem coerentes.

A França, por exemplo, tem uma oferta de 600 mil quartos em hotéis; a Itália tem mais de um milhão de quartos; já os EUA têm uma capacidade de 4 milhões de quartos de hotel.

Se a Itália adotasse como oficiais os dados da Banca d’Itália, ao invés dos números divulgados pelo Istat, em 2015, os turistas estrangeiros na Itália teriam sido cerca de 81 milhões, ou quase tantos quantos a França declara –e bem mais do que a Espanha divulga.

VIAJANTES BRASILEIROS NO EXTERIOR

Falando do mercado brasileiro “outbound”, ou da ida de turistas do Brasil a países estrangeiros, seria interessante fazer todas as verificações possíveis para ter dados acurados, até porque muitos viajam ao exterior de avião.

Com certeza, entre os turistas brasileiros que se destinam à Europa, a França e a Itália disputam o primeiro lugar e, depois, aparecem a Espanha e Portugal, que disputam o terceiro lugar nesse ranking.

Em termos globais, a Itália vai continuar disputando com França e Espanha a preferência de quem viaja para a Europa, onde turistas de todo o mundo procuram mais o lado cultural e as belezas paisagísticas.

Por outro lado, os EUA também atraem oferecendo shopping e diversão, têm parques temáticos etc.

Se os brasileiros integrassem o programa norte-americano Visa Waiver, onde cidadãos de determinados países são dispensados de vistos, atrairia um número ainda maior de turistas daqui [participantes do chamado Espaço Schengen, diversos países da Europa não exigem visto de entrada do viajante que tem passaporte do Brasil].

De uma maneira geral, a região sul da Europa está perdendo mercado entre os turistas brasileiros quando comparada a países do norte e do oeste do Velho Continente, que, por outro lado, não estão poupando esforços de marketing dos respectivos destinos.

A chegada ao Brasil dos voos de companhias como Emirates, Ethiad ou Turkish tem aberto novos horizontes para o turismo –e destinos que antes eram praticamente desconhecidos, estão crescendo nas preferências dos brasileiros, embora sejam pouco expressivos em termo de quantidade.

Mas voltando ao caso dos EUA, o modelo público-privado do Brand USA é um exemplo a ser seguido, pois é certo que, no marketing de destinos, é importante que a cada dolar (ou euro) gasto pelo público coresponda a igual quantia por parte dos empreendedores privados da indústria do turismo.

DESEMPENHO TURÍSTICO DA ITÁLIA

A Itália é um dos países mais lindos do mundo e, além das belezas naturais e paisagísticas, da história, da grande presença de obras de arte e bens culturais, tem, segundo a Unesco, mais locais tombados.

O território italiano oferece uma variedade tão grande de lugares a serem visitados que é até dificil decidir onde ficar.

Temos um clima ótimo e uma geografia única: as montanhas, os mares que cercam… Em toda a sua extensão territorial, as colinas e são próximas e acessíveis.

E temos a moda, o design, a gastronomia, os vinhos, além daquilo que eu chamo de um “estado de espírito”, um estilo inconfundível, um apreço pela “dolce vita”!

Todo mundo reconhece esses predicados como um dos principais valores da Itália, junto com nossa simpatia.

Mas é preciso lembrar, entretanto, que 40 anos atrás, a Itália era o país mais visitado no mundo –e que desde então vem perdendo posições nesse ranking.

Isso ocorreu porque a Itália nunca teve a preocupação de investir no turismo como uma indústria e o Enit, ente oficial de fomento das viagens ao país, carece de maior presença e efetividade nos mercados que enviam turistas.

As coisas estão mudando nesse último governo, que está focando mais no turismo receptivo e tem mudado a natureza jurídica do Enit, hoje um ente público, mas de direito privado, que no entanto precisaria de mais gerenciamento e recursos.

Por outro lado, as regiões italianas têm autonomia em matéria de promoção turística –e isso tem gerado um pouco de confusão, conquanto cada uma delas age por sua conta.

Em outubro, a Itália fará um referendo e uma das propostas de reforma consitucional é reverter essa situação e dar ao governo central –e ao Enit– o poder de decisão e os recursos necessários para promover o destino de forma única.

As regiões mais importantes, como a Toscana, o Vêneto e a Emília Romagna, têm prestado mais atenção ao mercado brasileiro nos últimos anos, mas ainda falta a consciência de quanto é importante se comunicar em português e focar na capacitação do trade para implementar iniciativas como, aliás, a outros concorrentes vêm fazendo há tempo.

MARCOS REGIONAIS

Quando me pergunta se Roma ou Milão, onde estão os maiores aeroportos, são os principais destinos procurados na Itália, lembro que a outras portas de entradas de passageiros de avião muito movimentados.

Esse é o caso de Bergamo, graças à forte presença das empresas aereas “low cost”, de Veneza, de Bolonha e de Catânia, na Sicília.

Em termos de destinos mais visitados, o ranking passa por Roma, Veneza, Florença e depois Milão.

Se formos falar de regiões, temos o Vêneto, a Lombardia, a Toscana e o Lácio e o Trentino –a primeira e última,  assim como Emlia Romagna, contam com grandes fluxos de visitantes por conta da proximidade com a Alemanha, a Áustria, e a Suíça.

Para os turistas brasileiros as regiões são as mesmas primeiras quatro que perfazem mais do 80% do total.

A IMIGRAÇÃO É ALIADA?
O fato de ter havido um enorme imigração para países como Brasil, EUA e Argentina sem dúvida ajuda.

A presença nesses países de descendentes de italianos dá à Itália uma relativa vantagem na promoção de seu turismo.

Mas é preciso considerar também que, aqui no Brasil, apesar da população que tem origem italiana ser a maior entre tantas, o processo de integração foi mais forte do que na Argentina, por exemplo, onde o peso da comunidade italiana é bem maior, pois a comunidade ficou mais fechada.

O DNA dos brasileiros tem um forte componente italiano, no idioma, na comida, nos costumes, mas é preciso lembrar que, até 20 anos atrás, quando ainda viviam os filhos das primeiras ou das segundas gerações, era mais frequente a existência de grupos de ítalo-brasileiros indo para a Itália, inclusive em voos especialmente fretados, ou “charter”; e, nesse tempo, existiam inclusive agências de viagens especializadas no segmento “étnico”, que por sinal haviam começado como agências marítimas.

Hoje isso não existe mais, essas empresas evoluíriam e viraram agências de viagens completas.

A (DELICADA) QUESTÃO DA SEGURANÇA

Segurança e medo de ataques estão, sim, de certa forma, atrapalhando o desempenho do turismo italiano, principalmente em relação ao mercado norte-americano.

O Jubileu, uma celebração que teve início no Vaticano em 13 de março e que, por um ano, conta com a participação de distintas igrejas e históricas igrejas cristãs –e que é extraordinário– também parece refletir essa preocupação –e os resultados de a adesão do público estão bem abaixo das expectativas iniciais.

Por outro, lado vale a pena ressaltar que muitas vezes os destinos levam vantagem quando confrontados como uma situação dificil enfrentada por seus competidores.

Agora, em 2015, os fluxos de viajantes para o sul da Itália, nas localidades de mar e praia, têm se beneficiado da  crise do norte da África do norte e de outros países do Oriente Médio.

A indústria do turismo é, com certeza, uma das que mais continuarão a crescer no mundo e os destinos mais atentos e preparados sabem que o turismo é um do setores econômicos que mais podem contribuir para o desenvolvimento.

PREFERÊNCIAS PESSOAIS AO VIAJAR

Difícil dizer…  Amo a Toscana, porque é onde cresci [Martucci é natural da cidade de Pisa], e a considero a região mais completa da Itália.

Também gosto muito do sul italiano, principalmente da Púglia, terra dos meus pais.

E considero Veneza e Capri duas maravilhas –e fico emocionado todas as vezes que volto lá.

Algo que também me faz muita falta é esquiar, uma grande paixão, seja nas montahas Dolomites ou nos Alpes.

Quando você mora há muito tempo fora do seu país, como eu, a sua meta regular de viagens é visitar a família e os amigos.

Infelizmente, não sobram muitas oportunidades e tempo para conhecer outros destinos, mas aprecio lugares exóticos e a viagem mais bonita que já fiz foi para os parques do Quênia.
Em setembro vou para a Itália, mas sonho em conhecer quanto a Nova Zelândia e, possivelmente, viajar num motorhome.

No Brasil, costumo dizer que o arquipélago de Fernando de Noronha é o lugar mais bonito a ser visitado, mas a verdade é que ainda não fui aos Lençóis Maranhenses.

E, depois do Rio, tenho um carinho especial pela Bahia, que recomendo sempre aos amigos “gringos” como o Estado que conserva a verdadeira alma deste país.”