Somos todos (um pouco) armênios?

Por Silvio Cioffi

O que têm em comum o cantor Charles Aznavour, a atriz Aracy Balabanian, o piloto de F-1 Alain Prost, o tenista André Agassi, o empresário brasileiro Carlos Tilkian e a estrela hollywoodiana Cher?

A resposta é: a origem armênia.

Brasil, França, Líbano e EUA foram alguns dos países que receberam os cidadãos armênios que, com enorme destaque, viraram brasileiros, franceses, libaneses e norte-americanos.

No Brasil, estima-se que a influente comunidade de origem armênia reúna entre 90 e 130 mil pessoas.

Antigamente, os sobrenomes armênios eram reconhecidos pelo sufixo “ian”, que significa filho de, mas, como se vê na lista de personalidades acima, nem sempre ele continua em uso.

Ocorre que, por detrás dessas inúmeras histórias pessoais de talento e sucesso, está vivo um dos mais lamentáveis acontecimentos do século 20: o massacre –ou genocídio– armênio, que teve início há 100 anos em Istambul, na noite de 23 para 24 de abril de 1915.

No último dia 12 de abril de 2015, o papa Francisco mencionou, no Vaticano, o trágico episódio afirmando, com convicção, que ele é “geralmente definido como o primeiro genocídio do século 20.”

A declaração papal suscitou imediata reação do presidente turco Recep Erdogan, pois o assunto, não é novidade, é matéria de encarniçadas controvérsias diplomáticas entre a Turquia, o Vaticano e a União Europeia.

Nos EUA, embora o presidente Barack Obama já tenha reconhecido durante campanha política que ao menos 1,5 milhão de armênios foram massacrados nos últimos dias do Império Otomano, há quem espere uma qualificação oficial mais incisiva do fato histórico como genocídio.

Já o governo alemão só recentemente passou a usar o termo genocídio para descrever a ação anti-humana das forças turco-otomanas contra a população de origem armênia na Turquia em 1915.

 

 

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A flor miosótis, cujo nome em inglês pode ser traduzido por “nunca-me-esqueças”, está sendo usada como emblema do centenário do massacre armênio. Com cinco pétalas que representam os continentes aonde os sobreviventes encontraram um novo lar, ele tem na cor roxa um símbolo da Igreja Armênia

 

 

DOS PRIMÓRDIOS À ERA MODERNA

 

A Armênia, cuja capital Erevan foi fundada em 782 a.C, pelo rei Argistis 1°, está situada num planalto próximo as montanhas de Ararat, onde, de acordo com a tradição judaico-cristã, a arca do patriarca Noé teria encalhado ao fim do dilúvio bíblico.

Modernamente, o país, que hoje faz fronteira com a Turquia, a Geórgia, o Azerbaijão e o Irã, foi a menor das repúblicas soviéticas.

Nesse meio tempo, entre 1813 e 1828, o Império Russo incorporou a Armênia Oriental –que inclui Erevã e as terras de Karabakh, na então Pérsia (hoje Irã).

Depois, sob o jugo otomano, os armênios gozavam de relativa autonomia, apesar de professarem a fé cristã num império de dominação muçulmana.

Nos anos 1800, cerca de 2 milhões de armênios viviam entre Constatinopla, a região da Anatólia e o sul do Cáucaso.

As perseguições contra os armênios tiveram início entre 1894 e 1896, quando o sultão otomano Abdul Hamid 2° conduziu uma campanha de cunho religioso e racial contra os armênios que viviam em Constantinopla (hoje Istambul).

No início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Império Otomano, já em franca decadência desde 1908, e o Império Russo, seu vizinho e igualmente expansionista, avançaram sobre a região do Cáucaso, no episódio que ficou conhecido como a Campanha Persa.

Os turcos, então formando um novo governo, passaram a olhar os armênios com desconfiança, enquanto os russos, por sua vez, tinham em seu exército um contingente significativo de soldados voluntários de origem armênia.

Nessa época e não por acaso, sob o governo dos “Jovens Turcos”, no dia 24 de abril de 1915 ocorreram as prisões e execuções de mais de 600 intelectuais de origem armênia em Constantinopla.

Engajados nas chamadas “marchas da morte”, estima-se que outras 1,2 milhão de pessoas tenham morrido de fome e doença durante essas deportações forçadas para a Anatólia que se seguriam à ação contra a elite turco-armênia.

 

O “NEGATIVISMO” DO GENOCÍDIO

Se entrarmos na tecnicalidade das cifras, dados do governo otomano, de 1896, davam conta de que 1.440.000 pessoas de etnia armênia viviam na Anatólia.

Já para o Patriarcado de Constantinopla, em 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra, a população de origem armênia na Anatólia pode ser estimada à época entre 8.845.000 e 12.100.000 pessoas.

Embora fontes oficiais turcas falem em 300 mil vítimas, os armênios e seus descendentes falam em 2,5 milhões mortos.

O fato é que, de 1915 a 1923, segundo a Enciclopédia Britânica, cerca de 1,5 milhão de pessoas podem ter sido assassinadas –e milhões de outras foram deportadas.

Numa visita ao semanário turco-armênio “Agos”, em 2013, no centro de Istambul, ouvi de seus editores que, mais importante do que fazer o governo da Turquia adotar a nomenclatura que eles chamavam de palavra “G” –meio que para encobrir o termo genocídio–, é  lutar para ter direitos reconhecidos, pelo direto de voto e de pleitear empregos e cargos públicos.

Um dos últimos editores-chefes do jornal “Agos”, Hrant Dink, foi assassinado em 2007, aos 52 anos de idade, na porta da sede da publicação, por um turco ultra-nacionalista.

“Um genocídio não termina enquanto não for reconhecido”, registra o portal brasileiro “Estação Armênia” (estacaoarmenia.com.br).

Nesse triste centenário em que as contas do passado ainda não foram definitivamente passadas à limpo, essa diáspora forçada nos transforma a todos, orgulhosamente, em cidadãos um pouco armênios.