Perdemos o “espírito de imigrante?”

Por Silvio Cioffi

Num momento em que nos reviramos para encontrar uma saída e que o país assiste perplexo um governo que antes mesmo de tomar posse está, nas palavras de Eduardo Giannetti, “sem projeto, sem força política e sem autoridade moral”, vale a pena olharmos para trás para tentar redescobrir nos velhos livros um pouco de nossa trajetória original e vitoriosa de miscigenação étnico-cultural.

Na década de 1920, Oswald de Andrade já dizia que “só a antropofagia constrói” e, como que para embasar a sua tese, o “Atlas do Império do Brazil”, do sábio e geógrafo Candido Mendes de Almeida, já anotava, em 1868,  “Terrenos occupados pelos Indígenas feroses” em grande parte da porção oeste do Estado de São Paulo.

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“Terrenos occupados por Indigenas ferososes” dominavam grande parte do Estado de São Paulo em 1868, segundo o “Atlas do Imperio do Brazil”, de Candido Mendes de Almeida
Juntamente com os negros e os mulatos, que o antropólogo Darcy Ribeiro chamou de “o mais brasileiro dos componentes do nosso povo”, os indígenas estão na base da nossa formação populacional. Entre 1519 e 1967, segundo fonte do Institute for African e African-American Research da Universidade Harvard, a chamada América Portuguesa recebeu 38,5% dos escravos africanos, contra apenas 17,5% da América Espanhola e 6,45% da América do Norte Inglesa. E, de acordo com o IBGE, o número de africanos que chegou ao Brasil foi de 4.009.400 pessoas.
Na base de nossa formação estão não apenas os índios e os afro-descendentes, mas também os imigrantes.
Não por acaso, em São Paulo, já foi costume se dizer “siamo tutti oriundi”, numa alusão à origem italiana de uma parcela bastante significativa da população. De fato, a capital paulista em particular e o Brasil em geral receberam, entre 1820 e 1912, quase duas vezes mais italianos do que portugueses.
E também cerca de duas vezes mais portugueses que espanhóis, isso de acordo com o anuário “Brazil, 1913″, de J. C. Oakenful, editado por Butler & Tanner” e distribuído pela Pan American Union, de Washington (DC).
Em números exatos, de acordo com esse guia norte-americano que começou a ser editado em 1900 e que já compilava detalhes sócio-econômicos e até culturais sobre o Brasil, a lista dos imigrantes que para cá vieram nesse período de 92 anos –de 1820 a 1912– é a seguinte:
Italianos        1.327.808
Portugueses      883.351
Espanhóis         412.438
Alemães           116.150
Russos               92.413
Austríacos          75.744
Turcos e árabes  39.286
Franceses           23.748
Ingleses              16.395
Suíços                   9.086
Suecos                  3.780
Japoneses             4.746
Belgas                   3.671
outros                205.426
Total               3.214.042 pessoas
Nos 100 anos seguintes aos estudados pelo anuário “Brazil” de J.C Oakenful, ou seja, de 1913 até 2013, é certo que  um mundo de novos fatos e de reviravoltas históricas trouxeram ao país significativos contingentes populacionais.
Com o fim do Império Otomano, em 1922, foi a vez de aqui aportarem sírios e libaneses, quase sempre de origem origem cristã. Como tinham passaporte emitidos pelos turco-otomanos e vinham regiões governadas por islâmicos, foram impropriamente chamados de turcos.
Isso explica em parte porque na lista acima, do anuário “Brazil”, de 1913, os chamados “turcos e árabes” sejam apenas 39.286 pessoas.
Hoje se sabe que a chamada imigração árabe, que teve início no final do século 19, é uma das mais importantes e há quem diga, baseado em dados colhidos pelo IBGE, que os brasileiros de origem libanesa e síria somem 6 milhões de pessoas.
Já os mencionados ítalo-brasileiros, cujo fluxo imigratório deve ter sido mais intenso entre 1880 e 1930, devem, segundo números das representações oficiais da Itália no Brasil, devem somar 30 milhões de pessoas –metade vivendo no Estado de São Paulo.
Os números do guia de 1913 obviamente não levam em conta também a Primeira Guerra (1914-1918) e a Segunda Guerra  (1939-1945) mundiais, quando mais estrangeiros escolheram morar no Brasil e aqui deitaram generosamenrte as suas raízes.
Pessoas que escaparam das guerras, da intolerância racial e da perseguição étnico-religiosa na Europa, que escaparam do nazi-fascismo, e que vieram construir um país que se orgulha de ser cada vez miscigenado.
O mesmo velho guia norte-americano de 1913, que anota a presença de apenas 4.748 imigrantes japoneses, padece desse problema, já que muitos dos nipo-descendentes, ou “nikkeis” vieram depois disso –estima-se que eles sejam hoje 1,5 milhões de brasileiros.
No caso da imigração japonesa, a vinda é ainda mais poética, pois teve início no dia 18 de junho de 1908, quando o navio Kasato Maru aportou em Santos (SP) trazendo os primeiros 781 japoneses que se transformaram em brasileiros legando ao Brasil uma das mais belas páginas de sua história.
Enfim, somos um pouco de tudo e soubemos, ao longo de nossa história, nos miscigenar com arte, alegria e originalidade. Somos uma mistura de raças e de credos que talvez não se possa encontrar em outro país do mundo.
Mas, atualmente, mergulhados numa crise de valores sem precedentes, não somos nada: perdemos nosso espírito de imigrante, a corrupção está institucionalizada e, descrentes, estamos vendo o Brasil “adminstrado” por uma classe política totalmente sem classe.