Num dia em que os EUA anunciam o restauro de suas relações diplomáticas com Cuba, rompidas desde 1961, e em tempos em que, com Dilma reeleita, há ainda quem advogue uma maior aproximação do Brasil com a Venezuela e com outros países sul-americanos adeptos de uma ideologia bolivariana, poucos são os que discutem o panamericanismo clássico, à moda norte-americana.
Em nossa sociedade e na academia, há desde sempre desconfianças em relação à uma atuação política “conjunta” dos países das “Américas” sob a égide dos EUA, país que alguns consideram imperialista ao extremo. E, também é verdade, há quem torça no Brasil o nariz para o bolivarianismo, que nada teria a ver com a nossa tradição histórica, mais filiada a Portugal do que à Espanha.
Mas é bom lembrar que o bolivarianismo é também uma forma de panamericanismo à sul-americana que, nos últimos anos, vem sendo perniciosamente instrumentado pela “esquerda”, mas que em si encerra valores políticos e filosóficos interessantes de integração entre países americanos.
Originalmente inspirado na atuação de Simon Bolívar (1783-1830), um herói militar que esteve à frente das lutas de independência da Venezuela, da Colômbia, do Peru, da Bolívia e do Equador, o bolivarianismo bebeu na fonte do Iluminismo europeu. Ainda jovem mas já viúvo, Bolívar, que coincidentemente morreu num dia 17 de dezembro, há exatos 184 anos, travou contato com as ideias de Montesquieu e de Voltaire numa viagem à Europa –nessa ocasião, interessou-se ainda pela biografia (belicosa) de Napoleão Bonaparte.
Hoje no Brasil, mesmo quem estuda o panamericanismo “de direita”, levado a cabo pelos EUA nos idos do início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), algumas vezes tece críticas à “propaganda americana” que, no entanto, foi prá lá de bem-sucedida em seus propósitos, colocando o país, para o bem e para o mal, na órbita econômica, ideológica e cultural norte-americana.
Em 1941, quando Walt Disney veio ao Rio para criar o personagem Zé Carioca (cuja certidão de nascimento está disponível no link: ( https://www.youtube.com/watch?v=PXa5CveNhTw), poucos atinavam para a mudança que estava em curso.
Icônica, a vinda de Disney no início dos anos 1940, quando foi recebido pelo presidente Getúlio Vargas, resultou no desenho animado sonorizado pelas músicas “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, e “Tico-tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu.
Até então, relativamente pouca gente falava inglês, as professoras lecionavam francês e nosso cotidiano intelectual e tropical tinha um quê fortemente europeizado.
No bojo da mesma política de “boa vizinhança” entre o Brasil e o Tio Sam, a visita do cineasta Orson Welles, no ano seguinte, 1942, resultou na filmagem de “It’s All True”, longa-metragem que também enfocava os jangadeiros cearenses e que, realizado sob os auspícios do Comitê de Assuntos Inter-Americanos e da RKO, jamais foi montado.
Por trás da vinda de Welles, estaria o bilionário Nelson Rockefeller, um ex-vice-presidente dos EUA: amigos desde que o cineasta realizou “Cidadão Kane”, consta que ambos, rooseveltianos, então faziam campanha contra Wiiliam Randolph Hearst, que teria simpatias hitlerianas. Hearst, controvertido magnata da imprensa, político e barão-ladrão estadunidense, era, ele mesmo, o personagem que teria inspirado “Cidadão Kane”.
No Brasil dessa era, a face mais visível do hollywoodianismo à brasileira e do panamericanismo escancarado talvez tenha sido Carmen Miranda, aliás nascida em Portugal.
Numa época em que importava alinhar ideológica e culturalmente o Brasil aos EUA, o playboy Jorginho Guinle, sobrinho de Octávio Guinle, dono Copacabana Palace, foi o encarregado de fazer a festa que aproximou de forma indelével os dois países.
Apesar de ter ficado para a história como alguém que “nunca trabalhou”, consta que ele colaborou com o esforço de guerra norte-americano de forma mais que ativa. E como ninguém é de ferro, nem em anos de chumbo, Jorginho, segundo se diz, teria gastado uma fortuna entre viagens e presentes, e namorado, nessa época, uma miríade de estrelas de Hollywood: Marilyn Monroe, Ava Gardner, Rita Hayworth, Kim Novak e Romy Schneider.
Segundo seus detratores, Jorginho Guinle teria inclusive batido ponto e recebido contracheque no consulado brasileiro de Los Angeles, onde, nessa época, diversos importantes intelectuais brasileiros atuaram como diplomatas –entre eles, o escritor Raul Bopp, que foi cônsul, e o poeta Vinícius de Moraes, que lá foi vice-cônsul.
Mas e o atual bolivarianismo “de esquerda”? Terá futuro entre nós? Vamos doravante adotar o “look” das camisas vermelhas num tempo em que mesmo Cuba está se aproximando dos EUA?
E a nossa empresa petroleira estatal, desvalorizada e envolvida em denúncias de corrupção, vai continuar mais a serviço da política do que do país, como estaria acontecendo na Venezuela?
O mundo mudou hoje, dia em que EUA e Cuba anunciam uma reaproximação diplomática.
E não vai longe o dia em que Dilma, reclamando de um suposto monitoramento que os norte-americanos estariam fazendo nos seus emails e bisbilhotando, segundo se disse na época, os segredos da Petrobras, cancelou uma visita diplomática aos EUA.
E, entre nós, quem sonhava com um “Brasil-brasileiro”, nem americanizado e nem bolivariano, fica a pergunta: hoje como dantes, que país é este?